Era noite, bem de noite, meio da noite e chovia, chovia bem,
chovia tanto. A chuva batia com tanta força na claraboia por cima da minha cama
que afastou qualquer vestígio de sono. Levantei-me, vesti umas calças e uma
camisola por cima das calças e da camisola do pijama, desci as escadas e
agarrei o casaco impermeável azul. À saída calcei as botas e agarrei a chave.
Desci mais escadas que me levaram à porta da rua, onde enfiei o capuz na
cabeça. Chovia tanto e no céu rasgavam relâmpagos com sete segundos de
distância de um barulho estrondoso. Não quis saber, limitei-me a andar, sem
rumo certo. Estava sujo, tão sujo que a sujidade quase me alcançou por completo…
discernir-me de um trapo velho seria uma tarefa difícil. Senti-me sozinho e
realmente sujo. Chorei horas a fio, perdendo conta às lágrimas que se
misturavam com a chuva e deambulei só.
Num trovão mais intenso olhei o céu e corri, corri muito na
direção do som. Dei por mim e ali estava, em frente ao mar. Olhei o céu, olhei o
mar, olhei o mar e o céu, num movimento cíclico e repetitivo. Senti o mar tocar-me
nos pés. Mas como poderia sentir o mar se todo eu era água? Outro relâmpago e a
chuva que se intensificou. Vi o relâmpago ao olhar o céu e uma moeda ao olhar a
areia junto do mar. Agarrei-a e, passados os sete segundos não ouvi o barulho
estrondoso e imponente, mas sim uma voz feminina e trémula atrás de mim que
murmura: cara ou coroa!?
Voltei-me, e ali estava ela, frágil, de casaco azul
impermeável e de capuz na cabeça. Estremeci. Corri e ela correu. Larguei a
moeda e ela apanhou. Para além de sujo achei-me louco por fugir, mas fugi até
que a energia me faltasse. Estava assombrado e cansado. Parei, achando que a
tinha despistado. Já não sentia a chuva, e os sons pouco se faziam ouvir.
Inspirei e expirei, tentando normalizar a respiração quando, de repente, a ouço
de novo: - cara ou coroa!
Enchi-me de coragem, olhei para trás e respondi: Coroa, já
que a cara é igual à minha.
Ela sorriu com um ar sereno e, enquanto lançou a moeda ao ar
diz – boa escolha, mas não temas mais, não há mais lados para além desses. A
não ser que, num segundo lançamento, a moeda permaneça em rodopio constante.
Isso sim, seria um processo de difícil habituação.
(premissa criativa: Um homem vê na rua, alguém exactamente igual a si – mas do sexo oposto)
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