19 de dezembro de 2016

dezembro

o último mês de cada ano é como o momento pré-parto generalizado a todos os géneros.
o frio chega, as contrações começam a agudizar-se progressivamente, muda a estação, excedem-se os gastos, as famílias reúnem-se no babyshower do dia 25, deixa-se de olhar para trás, deixa-se de olhar o presente, só se limpa o caminho e a consciência, afinal de contas, é o nascimento do ano, a comemoração mais unânime no planeta e a oportunidade utópica para se fazer diferente, para se ser diferente.
e, às 12 badaladas de todos os 31 de dezembro, concretizamos a fuga do baile que o ano anterior nos deu mas, para os mais distraídos fica a nota, de nada vale a pressa, cinderela que é cinderela, esquece-se sempre de um sapato lá atrás.


19 de novembro de 2016

salvo erro


há o erro por consentimento, a ação que, deliberadamente, decidimos ter e que, mesmo após auto-análise e algum tempo de preponderação, assumimo-lo como cERRtO, sabendo de antemão que, eventualmente, poderemos tropeçar.
há o erro por desconhecimento, em que estamos tão inebriados que não encontramos justificação alguma que nos alerte do possível perigo. avançamos convictos, até que, mais cedo ou mais tarde, levamos uma rasteira repentina, um atordoamento. 
e depois há o medo do erro,  esse não faz tropeçar, nem prega rasteiras, esse cria raízes e não permite avançar.



24 de outubro de 2016

fora de tempo

que horas são?
a.     (de einsten): uma ilusão. a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão.
b.    horas de saíres da cama
c.    um quarto para o meio dia
d.   espera aí, deixa-me olhar para a sombra
e.    onze e quarenta e cinco
f.     chegaste mesmo a horas
g.   não tenho relógio
h.   horas para estares calado
i.     não temos tempo para isso
j.     meio dia menos um quarto 
k.    11h45m11s
l.     menos uma hora nos açores
m.  estou sem pilhas
n.   tenho o telemóvel descarregado
o.    mais 9 horas no Japão
p.    horas de ires embora, fecha a porta
q.   horas de comprares um relógio
r.     é quase meio dia
s.    faltam treze minutos para o assalto
t.     cinco minutos desde a última vez
u.   horas de apanhar o metro
v.    11:45:57
w.   sabes que o tempo nunca importou
x.    trinta  e três segundos para a explosão
y.    não tenho tempo para acompanhar as horas, tenho mais em que pensar
z.    a imaginação não usa relógio

21 de outubro de 2016

sob aviso

procura-se um sociopata que domina todos os trilhos das florestas do norte, discute-se o orçamento de estado, o sumo de pêssego apareceu e está num hospital psiquiátrico em londres, o iraque, aparentemente, já respondeu ao levantamento de imunidade diplomática,  há quem venda e quem compre certificados do 12º ano, a hillary e o trump encerraram os debates em vegas, baby, o alberto joão jardim começa a ser julgado e veja-se só, o marcelo até já existe em holograma. 65% dos portugueses têm défice de vitamina d. note-se que esta vitamina adquire-se no contacto com os raios solares. a folha começa a cair, o outono já chegou há algum tempo. a hora muda em breve e chega a hibernação humana. de outubro a dezembro as pessoas entram numa névoa estranha, ficam meio adormecidas, pachorrentas. quando o natal começa a bater à porta, algumas acordam, o coração pede o canto junto à lareira e o quentinho da família. os restantes entram em hipotermia sentimental até ao dia 31 de dezembro, onde acreditam que o próximo ano será diferente.
hoje lisboa está sob aviso amarelo, prevê-se chuva intensa. é melhor não lavar a roupa e sair poderá ser uma jogada arriscada, associar a chuva às obras de 30 praças e largos da cidade remete-me a um cenário catastrófico.
vou vestir o fato de treino e desligar a televisão.


18 de outubro de 2016

theo

18h, horário de verão que já se assemelha ao de inverno. o dia já está mais próximo de ser noite e, para perceber isso, basta espreitar o céu.
o vai vem das pessoas que saem do trabalho; das que procuram trabalho; das que vão às compras de última hora; das que, finalmente, vão às compras; das que só usam a avenida como isso mesmo, um caminho para chegar ao destino; e das outras, que se deixam ir, não importa bem onde.
theo destaca-se entre os demais. traz um conjunto de sacos do lixo púrpura nas mãos e, quanto mais pessoas tentam entrar na loja, mais sacos distribui.
hoje as palavras enrolam-se umas nas outras, são atropeladas e muitas nem se chegam a ouvir, porque se extraviam algures entre o cérebro, o coração e a boca.
talvez os repetitivos e frenéticos movimentos de desenrolar os sacos, procurar o picotado, aplicar a força certa para soltar um deles, encontrar uma mão recetiva ao presente, apontar para o chão e balbuciar, ainda não estejam mecanizados. imagine-se a tentativa de sintonizar uma qualquer estação de rádio não sabendo que a antena não está lá.


vais comprar? não vais comprar, apanha o lixo. olha aqui o lixo.. está aqui. poluição. sujos, estão sujos. vai comprar? não vais comprar



5 de setembro de 2016

perda

I


a caneta fica sem tinta
e perde o seu propósito,
esgotou o número de letras disponíveis
ganha por isso um novo lugar
sai do estojo 
e passa à quase misericordiosa gaveta -
a guardiã dos bens não essenciais.
o último lugar digno de um objeto
sabemos que existe,
e onde está,
mas não o vês há demasiado tempo.

inconscientemente nutrimos de um certo afeto pelos bens materiais,
pelo menos afeto suficiente para tardar no adeus definitivo -
chamado caixote do lixo

perda temporária. - preparação para o adeus sem volta


 II


perdemos alguém pelo caminho -
chamado vida
ou esse alguém perdeu-se de tal modo dele mesmo,
que se afastou dos demais.
não importa,
caso queiras,
e agora ao longe,
continuas a vê-lo deambular
adormece atormentado
acorda entorpecido
ora cai
ora se levanta
há dias em que tropeça
tamanha a embriaguez,
estupidez

a miopia pode distorcer a visão,
principalmente se a distância se impõe
mas não te cega
não te impede de ver
fazendo assim da perda de alguém 
uma perda não absoluta



31 de agosto de 2016

#

'nas palavras que entram pela água, contrariando a natureza, escreveremos a nossa história',
dizias-me tu.
e tinhas razão.

sempre me disseste que gostarias de descer as colinas de lisboa às cambalhotas
e que estas deviam ser feitas de areia.
e tinhas razão.

sempre me disseste que gostavas de andar de chinelos
e que o engraxador nunca te poderia dar graxa.
tinhas razão.


é, 
razão nunca te faltou, 
mas sabes,
hoje a maré está alta,
as palavras flutuam
e até o engraxador massaja pés.


7 de junho de 2016

olho-de-bolso

conseguir parar o mundo, minto, conseguir parar parte do teu mundo, pois suspender o mundo que também é dos outros acarretará demasiadas responsabilidades e sequelas.
transportar um olho-de-bolso, com uma objetiva hipotética, capaz de estagnar o momento, qualquer que seja, por um período de tempo previamente estabelecido.

não falo sobre tecnologia, nem registo de uma imagem ou vídeo acessível durante 5 segundos na tua memória virtual. Falo da importância em saber ver, querer contemplar e apreciar o teu mundo numa pausa. Compreender trazendo o exterior para dentro, deixarmo-nos maquilhar pelas coisas que observamos ao detalhe. 


10 de maio de 2016

bê-á-bá


nem todas as palavras se pronunciam com a mesma facilidade. nem todas as palavras se usam com a mesma regularidade. não é a complexidade do léxico, nem são as palavras difíceis.
é a frequência, o tom e a intensidade escolhida no uso de determinados vocábulos, aqueles simples, quase onomatopeicos. 
são esses que ditam muito daquilo que somos, muito daquilo que fazemos, o que ambicionamos e o que, efetivamente, alcançamos.

o resto é tagarelice, paleio e lengalenga que enche, satura, entretém. não é o espelho do que somos. 
não procures as palavras certas, nem proclames meias palavras que te saltam da ponta da língua, essas tendem a ser a nossa condenação.




24 de janeiro de 2016

meia luz de inverno

headphones nos ouvidos, mochila às costas e a chave no bolso – a  ignição para que o meu corpo se ponha em andamento por aí. balanço ao ritmo dos acordes, ora não fossem eles pensados para esse mesmo efeito. são ruas, recantos e rostos à meia luz de um domingo de inverno. 
a luz muda as pessoas e as pessoas mudam o espaço. e é nesta dessincronização que divago, na brisa de mais um dia frio com o sol à espreita - o (des)ritmo animado da vida.