23 de novembro de 2014

o corpo que se faz casa

a casa sente-se viva pelos cheiros, pelas luzes acesas, pela roupa no estendal e pelo movimento que se sente ao olhar para ela, ao viver nela.
o corpo certo é a imagem, o reflexo, a fusão entre aquele que constrói e a construção efetiva - os alicerces e as paredes por si não falam nem vivem, só se deixam viver.
não se pode nunca dar por terminada a construção de uma casa com vida, podendo isto tornar o papel do arquiteto inglório. o mesmo se aplica ao corpo, de nada adianta um bacharelato, um mestrado e um doutoramento em anatomia, pois a partilha de experiências no corpo que se faz casa não depende apenas de quem é identificado (e escolhido), mas também de quem identifica (de quem escolhe) e nunca saberemos como o outro nos vê.
mas, à parte das visões deturpadas da realidade individual, é possível sentirmo-nos em casa num corpo exterior ao nosso enquanto fazemos, em simultâneo, do nosso corpo abrigo - e estamos perante uma casa de duas assoalhadas.

encontrar a casa num corpo não se trata de uma questão de arquitetura de espaço mas sim de uma questão de anatomia -  de corpo e calor.



 

20 de setembro de 2014

jogo das contradições



se em x se der o começo, e o fim chegar em z,  todas as pontes passarão pelo- equação simples,sem lógica transcendente necessária.

se o princípio surge em y, silenciam-se as pontes e os meios para atingir o fim em z. os fragmentos entre inícios e fins podem refletir-se em silêncios, no entanto, são um forte indicador de uma história pobre, sem  grande espaço para desvios e enredos.

z como início, meio e fim - acumulador de funções, espaço e tempo. ter em si todo o (des)controlo.

qual o melhor começo?aquele que é consequente do fim ou aquele que tem o fim como consequência?poupar no trabalho de pensar é negar, conscientemente, que se aprenda a pensar por si próprio.




9 de setembro de 2014

consecutivamente inconsequente

as boas vindas chegam já com a despedida no verso, em letras pequenas e no canto da página onde o dedo pousa.
quando se fala de boas vindas salientes e despedidas discretas o contexto nunca será uma luta de igual para igual.
os até já não obedecem a um padrão no tempo, podem medir minutos, horas, dias, semanas. 
de salientar que um até já elástico deve trazer sempre consigo recomendações de utilização, uma vez que esta ginástica temporal acaba, mais cedo ou mais tarde, por quebrar o elástico  temporalmente desgastado.
os compromissos são desfasados, sem harmonia.
o desfasamento conquista-se acertando o passo, mas a harmonia é imprescindível aquando da celebração de um compromisso, e deve ser, no mínimo, agradável ao ouvido.
às vezes, não meço as consequências.
na verdade, parece tratar-se de uma inconsequência crónica.


(fotografia . diana b.)







8 de setembro de 2014

cíclico


a corrente é forte mas a vontade aumenta,
a altura intimida mas a coragem não se atormenta,
a velocidade ultrapassa limites mas a adrenalina vence
o cansaço é bruto mas a meta a ele pertence.
a chuva cai,
o sol queima,
o vento agita,
e tudo o que vê é uma estrada sem fim à vista.
mas ele avança determinado e com firmeza,
avança encorajado após a finta das dúvidas com alguma destreza.


a corrente é forte e a vontade escasseia
a altura intimida e a coragem foge volta e meia
a velocidade ultrapassa limites e o medo espreita
o cansaço é bruto e a meta parece ter sido desfeita.
a chuva cai,
o sol queima,
o vento agita,
mas os passos continuam certos,
e ele avança, sempre convicto,
sem importar como, nem para onde
acreditando apenas que as adversidades formam os mais fortes.















21 de agosto de 2014

câmara lenta


escrevo dez linhas para, depois disso, as transformar numa frase e, depois disso, a resumir a uma palavra...uma única palavra.
agarro na palavra e volto a escrever dez linhas, depois disso, volto a escrever uma só frase, resultando numa só palavra...diferente da inicial.
de dez linhas a uma frase, de uma frase a uma palavra.
de uma palavra a dez novas linhas, de dez novas linhas a uma nova frase, de uma nova frase a uma nova palavra.

decomposição, desconstrução e repetição. são avanços, em câmara lenta.

porque andar para a frente implica saber o que fica para trás e ter pressa leva a pontos finais fora de tempo.


 'as minhas dúvidas formam um sistema', escreveu Wittgenstein."

17 de julho de 2014

velocímetro humano

a velocidade do indivíduo é uma questão de perspetiva. não temos um velocímetro incutido no nosso organismo ou, se o temos, não está sujeito a peritagens regulares estabelecidas por regras universais. o ritmo ao qual nos impomos deve sobrepor o ritmo que naturalmente nos guia? chegar o mais-breve-possível-ao-virar-da-esquina é assim tão importante? ou o que importa é o final da estrada? posso decidir correr e chegar mais rápido (estando inerente o risco de perceber erradamente a meta e chegar primeiro sim, mas ao sítio errado), posso abrandar o passo de forma a ajustar a minha velocidade à de outros, posso atrasar o passo e seguir o rumo que mais me convém, posso cortar caminho, posso vendar os olhos e ir sem destino. na realidade, posso tudo se não houver controlo do desconforto.

em boa e curta verdade, a velocidade gira em torno da tua sincronização e dessincronização com os outros e contigo mesmo. e, por muito que tentes, nunca irás saber a velocidade exata que percorres, nem que os outros percorrem, nem que tencionas correr. o problema (ou a virtude) do código do velocímetro humano é a inexistência de sinalização.

13 de maio de 2014

histórias d'O indivíduo

são 4 belas paredes onde o vazio se torna imperativo. branco sobre branco, onde a única prova que o homem la coabitou é o chão sujo. o ser humano é imundo e prova disso é que tudo em que toca, ora destrói, ora distorce, ora corrompe. o chão estava sujo e as paredes davam a sensação de que se entrava num novo mundo.
o que pensa estar a ver não é o que na realidade os outros vêem. está em entre quatro paredes e o chão sujo. o tecto? não existe, é a céu aberto. como poderão as paredes sobreviver à chuva? ao sol? se te digo que o que eu vejo os outros não alcançam, digo verdade. e se te digo isso a ti, é só porque sei que chegará o dia em que verás o mesmo que eu vejo. louco? não sou louco, louco é o mundo que nós reconstruímos. estas quatro paredes são a prova. nada lhes faço após a indecência  humana de as construir. dei-lhes luz, dei-lhes luares, dei-lhes água, e até mesmo um pouco de nevoeiro, para que se pudessem abstrair da existência de três réplicas. estas quatro paredes surgiram sem que a sua voz fosse ouvida, são o fruto de uma noite de sexo fugaz e irracional, cujo amor tirou folga, mas a sua concepção não. são o resultado da inconsciência e grande insensibilidade do ser humano, que nada mais quer para além de conservar o seu umbigo. estas quatro paredes são, agora, amadas e tratadas. adoptei-as, sem burocracias e avaliações de nada nem ninguém, pois não deixei espaço para coisas inútes. como pode alguém decidir o que devo ou não devo adquirir se tudo aquilo que pisamos não nos pertence?  pois bem, estou só a jogar o vosso jogo. estas quatro paredes são minhas, e se achas que o tecto está sobre elas, estás enganada. e se achas que o chão está sujo, estás certa. sujaste-o à entrada.

não vou sair. aqui tenho tudo aquilo que quero e protejo-me de tudo aquilo que me enoja. a minha imaginação, as minhas quatro paredes, e o pedaço de céu que acidentalmente coincide com o meu ângulo de visão. é tudo o que preciso e somente aquilo que quero que me acompanhe. o chão é uma consequência. 

pudesse eu levitar.

6 de maio de 2014

equilíbrio demente

tropeçar nos vazios que se julgam arrumados e esquecidos.
mas um vazio não se arruma, muito menos faz tropeçar.
tropeçar na vontade de preencher o vazio que persistentemente paira sobre os sítios, sempre desacertados.
poderá tratar-se de uma sobrelotação de determinados lugares sobre a escassez de outros, ou então são as vontades que escolhem lugares de primeira classe, negando-se ao desconforto e à solidão, e logo se apinham, umas sobre as outras, tornando o discernimento inexequível – todas no mesmo saco.

dos vazios sabe-se que são desprivilegiados e insensatos e das vontades que são demasiado comodistas. e é ser metade vontade que extravasa e metade um vazio que nunca se completa – o aclamado equilíbrio demente das coisas.

3 de abril de 2014

vai até um bar pede uma queda

reflexos consecutivos de ações inconsequentes, artimanhas de discursos sempre pensentes.
o ontem que nunca mais passa, o futuro que nunca mais vem.
a corda bamba dos dias que correm desiguais.
não te deixes cair e, se caíres, que seja por livre e espontânea vontade.
vai até um bar e pede uma queda, surpreenderás o funcionário mas, em real verdade, acabará por te satisfazer  o pedido.
um buraco que se abre, um poço bem fundo.
uma queda pedida, uma queda entregue.
no final pagas a conta, tapas o buraco e vens-te embora.

a isto se chama controlo extremo (até mesmo do descontrolo).

28 de março de 2014

o artista de circo

e o hábito vem entranhar-se de novo nas minhas palavras. é um dos maiores arruaceiros da minha coerência, das poucas coisas cuja peça raramente encaixa. é traiçoeiro e ilusionista.  malabarista e, simultaneamente, trapezista.
não gosto do hábito, nem das manias dele. incomodam-me o sapato, dão-me a falsa estabilidade que tanto rebato e nunca ganho. esse mesmo hábito que se mascara de mil e uma formas, se confunde com o que não pode nem deve ser confundido. esse artista de circo de rua que me entra pela casa sem permissão. não gosto do hábito, nem de falar sobre ele, nem de escrever sobre ele mas, como disse, ele é um fora da lei e eu o seu assalto preferido.


22 de março de 2014

mão direita

os dedos trémulos pousados sobre o teclado, o cursor a viajar sobre o botão ENVIAR… o tremor era tanto que levava o cursor insistentemente a desviar-se, sempre antes do click ser feito. a incapacidade fazia-o sentir-se inútil, mas nunca menos teimoso, mas nunca menos orgulhoso, mas nunca menos persistente.
ofereci ajuda, mesmo sabendo que o ‘não, obrigado’ seria garantido. meu dito, meu feito - limitei-me a assistir.
enquanto não completava a missão e tentava transmitir ao sistema nervoso central que, a bem ou a mal, hoje ou amanhã, aquele email seria enviado, aproveitava para reler e refazer uma ou outra frase cujas palavras não ficaram bem escritas e onde o sentido se perdera.
 voltei a aproximar-me, dei-lhe um beijinho carinhoso e convenci-o a deixar-me ajudá-lo. finalmente cedeu:

Querida neta,
Sinto muito a tua falta… na verdade, sinto tanto a tua falta quanto a falta que sinto da minha mão direita. Já sei que te ris neste momento mas, pensando bem, é uma comparação legítima.
A minha mão continua aqui, agregada ao meu antebraço, contudo, tem vindo a ganhar autonomia, como se fosse um apêndice do meu corpo sobre o qual não tenho controlo. Oscilações constantes, movimentos inesperados e completamente despropositados.
Já tu, continuas aqui, no meu coração, no entanto, estás aí, do outro lado do atlântico, sozinha, balançante e, acima de tudo, longe, longe de mim, tão longe que a distância chega a doer, moer, incomodar.
Tenho saudades, tenho muitas saudades tuas. Assim como tenho saudades da minha mão, mas essa, essa eu sei que ganhou autonomia tal que jamais me voltará a agradar. Já tu, minha pequena, tu enches-me tanto de saudades quanto de orgulho, e por mais que te queira próxima de mim, nestes meus dias tão longos, não o permitiria. Estás a construir uma base sólida, com estruturas firmes, diria até que inquebráveis. E esses alicerces serão cruciais no teu futuro. Por isso, embora veja a minha mão todos os dias, nela não deposito qualquer confiança, já em ti, que não te vejo há meses, tenho toda a confiança do mundo certo que continuarás assim, decidida, lutadora.
Escrevo-te para te agradecer a insistência em me fazeres tolerar estas novas tecnologias, como vês, consegui fazê-lo – o email está escrito - uma pequena vitória para mim, uma grande derrota para o Parkinson.

Fica um beijinho do teu avô e a boa notícia é que a tua visita está para breve!


Até já



"Os dedos trémulos pousados sobre o teclado, o cursor a viajar sobre o botão ENVIAR...”
Continue este texto usando no máximo 400 palavras.

16 de março de 2014

dessincronização voluntária

e, por momentos, tudo é rápido.
o tempo corre, como se o atraso para o segundo seguinte fosse uma constante.
as viagens deixam de ser viagens e passam a ser momentos breves de cegueira que te levam a algum lado, evitando atrasos maiores.
pouco importa o que o comboio te mostra, a velocidade cega-te, torna-te menos curioso. 
não importa o caminho,o que queres é chegar. 

o perigo, na tua cabeça, só existe quando uma avaria inesperada surge e a linha recta, que te leva ao destino final, fica interrompida durante algum tempo. aí sim, és obrigado a recuperar a visão periférica e a observar o que te circunda, pois o atraso será realmente significativo na tua singular perspectiva de tempo. no entanto, nada podes fazer, nada podes mudar e, pouco depois,conformas-te... nada podes fazer para além de esperar que o tempo se sincronize. 
não importa a causa, mas sim o inconveniente causado. 
voltas ao teu lugar, sim, inconcebível é sentares-te num lugar não correspondente ao que o teu bilhete te deu - uma lotaria em pequena escala -  lugar 113, caruagem 22. podes até ser a única pessoa no comboio, todos os lugares da carruagem podem estar vazios, mas jamais te sentarás na cadeira ao lado. 

somos cegos, a visão periférica está a desaparecer e poucos se questionam, é confortável viver conformado. e os conformados parecem gostar das duas palas invisíveis que deturpam o tempo e o espaço. 
fotografia: laura williams

10 de março de 2014

#cartas para roma

(...)

- lembras-te da sarjeta? foi nela que vi o quão longe pode ir a tua imaginação. agarraste todos os teus comprimidos,e os de todos os teus amigos, e despejaste-os aqui, esperançosa de que chegariam a todas as pessoas doentes, do outro lado do mundo - a eterna sonhadora.
Estiquei o braço para agarrar a mochila que está na outra ponta do banco, sabes que poucas são as coisas que me fazem descruzar as pernas. consegui alcançá-la a custo. abri-a e atirei todos os meus livros para a sarjeta.
- é, está na altura de ler outros livros para que novas histórias se escrevam.

31 de janeiro de 2014

um mapa na mão esquerda


um mapa de um sítio qualquer, de um outro pedaço de mundo que não a cidade de lisboa...aliás, agora que me aproximo percebo...é um mapa mundo.
um mapa descontextualizado mas que, ainda assim, tenta ser desvendado, tenta ser útil.
o indivíduo traz o mapa na mão esquerda enquanto sobe e desce da rua da saudade - está à procura de alguma coisa.
é um mapa mundo, como se encaixará ele na cidade? terá lisboa espaço para tanto?
ele acredita que sim.

entra agora numa travessa sem nome nem placa. um espaço não identificado, um espaço que não chegou a ser alguma coisa...e é isso que ele procura. e agora pula de alegria, não querendo saber do mapa amachucado que cai no chão e que é pisado por ele vezes sem conta. há um limoeiro no meio da travessa sem nome, nem mais acima nem mais abaixo...exactamente no meio. trepa a árvore como se fosse realmente preciso, trepa uma árvore que tem o seu tamanho.

um macaco que gosta de limões.

o indivíduo que encontrou no mapa mundo as coordenadas certas para um sítio não identificado, sabendo apenas que lá perto existe uma rua com nome de saudade.

é o indivíduo  numa das suas aventuras,em mais uma das suas histórias.
é o mundo na perspetiva de um louco (aos olhos dos outros).
é o mundo do individuo singular, que não quer ser compreendido, que não pensa em fazer-se compreender, pois já não há paciência para ensinar um monte de sobre-dotados de canudos a pesar as costas.

o indivíduo -  um homo sem qualquer necessidade de ser sapiens.


17 de janeiro de 2014

circunstâncias

é importante organizar as coisas para que as possas chamar na conjugação de qualquer verbo em pretérito perfeito ou imperfeito...pouco importa.
não saber coisa nenhuma, ou desejar qualquer coisa é demasiado vago e não queiramos exacerbar o uso das coisas.
o impreterível aqui é saber e querer arrumar as coisas para que, depois disso, as possas chamar de passado. ..um passado muito mais simplificado.