29 de novembro de 2013

imobilidade aos olhos do mundo

os raios de sol ainda espreitavam timidamente pela janela, querendo certamente passar despercebidos. os meus olhos ainda se queriam manter fechados, ao contrário de todo o meu organismo que desejava encarar o dia. o frio contrariou todas a tentativas de movimentos que não se assemelhassem a um slow motion, sem que fosse sequer necessária a desaceleração da imagem. permaneci imóvel aos olhos do mundo e numa inquietude intensíssima aos meus.
sentir cada movimento microscópico que somos capazes de fazer absorve-me. absorve-me todas as atenções,ao contrário da destreza extrema e veloz de movimentos que, embora fascinantes, ignoram o caminho. 
um estalar de dedos: o polegar e o dedo médio que se encontram na parte interior da mão,o indicador que, com subtileza, se afasta de forma a não incomodar o processo. o mindinho e o anelar que se encostam à palma da mão, enquanto os protagonistas se unem como que um braço de ferro. cada um empurra para o seu lado,para lados opostos, no entanto, e ao contrário das forças que se opõem num braço de ferro, o estalar de dedos precisa desta mesma oposição, deste um-contra-um, para que o som aconteça. 
o espirrar: uma forma irreverente do teu corpo expulsar o dióxido de carbono em excesso. expulsão do ar que, não só tem vontade própria, como implica um encadeamento sequencial de reflexos.a irritação do nariz, inspirar, a epiglote e as cordas vocais que se fecham, a contracção do abdominal e a pressão do diafragma, a epiglote e as cordas vocais que abrem rapidamente, as pálpebras que se fecham e finalmente atchim, atchim, atchim.
a imobilidade aos olhos do mundo perde-se ao primeiro estalar de dedos, ao primeiro espirro...já o processo que levou a esse estalar de dedos e ao primeiro, segundo e terceiro espirro é tão rápido que poucas são as pessoas que o conseguem ver, que o querem ver.

10 de novembro de 2013

como outras banalidades

sei o trânsito e todos os sinais vermelhos com que me irei cruzar no dia seguinte. sei o preciso momento em que a sombra no meu quarto será maior do que o pedaço de sol que atravessa as janelas. especulo sobre os capítulos seguintes do livro que leio, mesmo antes de lá chegar.
não sei a hora certa, segundos depois de ter olhado o relógio. não sei o que almocei ontem,nem o que o noticiário me disse há pouco. não me interessam os dizeres e os pensares sem fundamento, ou os dizeres e pensares mascarados de fundamento sem conteúdo algum.
sou, portanto, dessincronizada das banalidades.

4 de novembro de 2013

cara ou coroa


Era noite, bem de noite, meio da noite e chovia, chovia bem, chovia tanto. A chuva batia com tanta força na claraboia por cima da minha cama que afastou qualquer vestígio de sono. Levantei-me, vesti umas calças e uma camisola por cima das calças e da camisola do pijama, desci as escadas e agarrei o casaco impermeável azul. À saída calcei as botas e agarrei a chave. Desci mais escadas que me levaram à porta da rua, onde enfiei o capuz na cabeça. Chovia tanto e no céu rasgavam relâmpagos com sete segundos de distância de um barulho estrondoso. Não quis saber, limitei-me a andar, sem rumo certo. Estava sujo, tão sujo que a sujidade quase me alcançou por completo… discernir-me de um trapo velho seria uma tarefa difícil. Senti-me sozinho e realmente sujo. Chorei horas a fio, perdendo conta às lágrimas que se misturavam com a chuva e deambulei só.
Num trovão mais intenso olhei o céu e corri, corri muito na direção do som. Dei por mim e ali estava, em frente ao mar. Olhei o céu, olhei o mar, olhei o mar e o céu, num movimento cíclico e repetitivo. Senti o mar tocar-me nos pés. Mas como poderia sentir o mar se todo eu era água? Outro relâmpago e a chuva que se intensificou. Vi o relâmpago ao olhar o céu e uma moeda ao olhar a areia junto do mar. Agarrei-a e, passados os sete segundos não ouvi o barulho estrondoso e imponente, mas sim uma voz feminina e trémula atrás de mim que murmura: cara ou coroa!?
Voltei-me, e ali estava ela, frágil, de casaco azul impermeável e de capuz na cabeça. Estremeci. Corri e ela correu. Larguei a moeda e ela apanhou. Para além de sujo achei-me louco por fugir, mas fugi até que a energia me faltasse. Estava assombrado e cansado. Parei, achando que a tinha despistado. Já não sentia a chuva, e os sons pouco se faziam ouvir. Inspirei e expirei, tentando normalizar a respiração quando, de repente, a ouço de novo: - cara ou coroa!
Enchi-me de coragem, olhei para trás e respondi: Coroa, já que a cara é igual à minha.

Ela sorriu com um ar sereno e, enquanto lançou a moeda ao ar diz – boa escolha, mas não temas mais, não há mais lados para além desses. A não ser que, num segundo lançamento, a moeda permaneça em rodopio constante. Isso sim, seria um processo de difícil habituação.

(premissa criativa: Um homem vê na rua, alguém exactamente igual a si – mas do sexo oposto)

23 de outubro de 2013

linguagem violenta

Linguagem violenta: a única. 
A outra é: Sedução ou Submissão. 
Ou seja, o mesmo medo: recear estar só. 
Quando se fala, fala-se. No alto da matéria e do espirito. 

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

13 de outubro de 2013

desafio criativo - sonho.

sonho-te,
em contornos perfeitos,
em gestos sem preconceitos.
sem medidas,
sem rotinas,
sem religião nem doutrinas.

sonho-te,
e em todos eles, sem excepção,
és repetição,
tentação,
repetição,
atracção,
repetição.

sonho-te,
em contornos perfeitos,
em gestos sem preconceitos.
sem medidas,
sem rotinas,
sem religião, nem doutrinas.

sonho-te em repetição
querendo-te por antecipação, 
sabendo que, ao acordar, serás apenas contradição.

Acordo e és o sonho desfeito,
na contramão dos meus dias.
és tudo o que não és quando te sonho:
não és nada nem ninguém.

diz-me só, quando adormeces?!
estou exausta de tanto vaivém.



31 de julho de 2013

histórias d'O indivíduo

era só mais um indivíduo, no meio de tantos outros desvairados, que se veio a tornar O indivíduo, o responsável por desconstruir todas as crenças banais. e O indíviduo todos os dias, sem excepção, passeava pelas ruas de lisboa com o único objetivo de transmitir a sua arte.
é parte integral da condição humana tornar o inacreditável acreditável, ouviste jovem?
estranhei a abordagem desligada de boas maneiras e preocupada apenas com a mensagem. fingi não ouvir, segui o meu caminho não conseguindo não pensar.
é parte integral da condição humana tornar o impossível possível, ouviste jovem?
é parte integral da condição humana tornar o sobrenatural natural, ouviste jovem?
é parte integral da condição humana tornar o lógico ilógico, o mágico mundano, retirar prazer do desprazer, ouviste bem? 
habituei-me à sua presença e comecei a procurá-lo todos os dias, também eu sem excepção.
encontras conforto no desconforto, sabias?
encontras agradabilidade no desagradável, já to disse?
era isto, uma frase, uma simples frase dita a cada novo dia que passava. e ecoava em mim, obrigando-me a questionar minha tão aclamada zona de conforto.
saboreia o dissabor e encoraja-te perante o desencorajador.
comecei a sentir-me familiarizada com as pessoas que, assim como eu, todos os dias esperavam o desvairado que se tornou O indivíduo para muitos.
acredita deslumbradamente, tudo é mágico, tudo é magnífico.
foi esta a sua última frase. com isto desapareceu, mas todos os dias, sem excepção, sorrio às pessoas que, como eu, continuam à sua procura, não querendo deixar de pensar,questionar, viver.









8 de julho de 2013

passo inseguro

vou caminhando sem rumo certo. vou pelas ruas repletas de calçada insegura, evitando tropeçar no alvoroço. vou certa, ainda que sem rumo. vou caminhando em jardins com sol de fim de tarde e calor de meio dia. vou caminhando em noites escuras com cheiro a verão e em areia fina que escapa entre os dedos. vou certa, ainda que sem rumo. e sempre chego. e chego certa.

27 de junho de 2013

escreve

escreve. escreve porque queres, sempre porque queres. não escrevas palavras com as quais não tens uma boa relação. desconstrói as palavras, mas escreve. cria o teu dicionário, mas escreve. escreve com gosto, por gosto.
escreve. escreve porque queres, sempre porque queres. escreve palavras que não serão ditas de outra forma. agarra o papel e escreve. liga a máquina e escreve. fecha os olhos e escreve. escreve muito ou pouco, mas escreve.
escreve. sempre porque queres, àqueles que não queres e aos que o querer não chega.


14 de junho de 2013

jornada gramatical

quero as pausas, as vírgulas, os dois pontos e  até mesmo o travessão (esse que em dias também serve de travesseiro). que os pleonasmos se intensifiquem e que as sinestesias agridoces me despertem novas sensações. dispenso as hipérboles, e as antíteses cheias de nada pouco me dizem. não me venham com eufemismos e, acima de tudo, brindemos com e às onomatopeias (tchim tchim).

11 de junho de 2013

eunice munoz.eugénio de andrade

Tinha um cravo no meu balcão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
Só não dei o coração;
Mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?

Eugénio de Andrade


6 de junho de 2013

na linha divisória

.. entre o leste da minha juventude e o oeste do meu futuro. 
                                                                                                                                                                   
Pietrino Di Sebastiano
porque os únicos que me interessam são os loucos; os loucos por viver, loucos por falar, loucos por serem salvos, que desejam tudo ao mesmo tempo e nunca bocejam ou dizem coisas clichês, mas queimam, queimam, queimam como fogos de artifício pela noite
 kerouac , on the  road

31 de maio de 2013

.

pense-se na vida como um imenso problema, uma equação ou, melhor ainda, uma família de equações em parte dependentes mas também parcialmente independentes umas das outras...subentendendo-se que tais equações são bastante complexas e cheias de surpresas e que, muitas vezes, somos incapazes de lhes descobrir as 'raízes'.
fernand braudel 

9 de maio de 2013

bernardo.


Não se explica por muito que se tente.
Este movimento geométrico de inúmeras faces
Persegue-me diariamente, sem volta a dar,
sem saber, ou querer saber porquê.
Acontece. Por instinto.
Como outras banalidades:
Somos o ciclo,
Somos a volta do círculo
Somos o quadrado do círculo
Somos o ponto que seduz o quadrado
E o quadrado que se transforma em círculo
Somos a rotina.
Somos repetição
Somos repetição
Somos repetição
Somos repetição
E também somos tudo isto no sentido contrário
E também somos tudo isto no sentido contrário
E também somos tudo isto no sentido contrário
Bernardo Sassetti, 2008


3 de maio de 2013

josé.


17 de abril de 2013

#note to self



'se tens urgência em chamar alguém não deves utilizar versos...talvez o melhor seja gritar.'


16 de abril de 2013

'existir é feito de peças impossíveis de imitar'


é como estares numa exposição e te interessares pela peça do cartaz.é única e já está vendida.


bem, até podem tentar plagiá-la, mas notarás a diferença. 
faltará-sempre-alguma-coisa.

29 de março de 2013

queijos frescos e latas de conserva.


reticências, é isso! todas as histórias de amor deviam incluir reticências no título. não vou ser tão exigente assim. todas as histórias de amor deviam incluir reticências ou no título ou na sinopse ou no prefácio. num deles deveria ser indispensável, sujeito a coima para os insubordinados. porque o amor é isso…uma eterna reticência e o que estão a fazer é publicidade enganosa, meus caros.
começamos com uma corrida louca para descobrir o que é isso do amor que toda a gente fala, para sentir o amor que toda a gente afirma sentir. e lá vamos nós (sim, todos nós) correndo incessantemente até que o primeiro sinal nos faz travar sem olhar para o que vem atrás. como não temos termo de comparação, lá ficamos temporariamente iludidos julgando ter encontrado o sacana do amor, achando que a eureka se fez bem cedo e quase a custo zero.
depois disso, tudo depende do prazo de validade: uns iludem-se mais tempo do que outros, dependendo do tipo de alimento a que se associem (se for um queijo fresco e uma lata de conserva, fácil será descobrir quem se apercebe do equívoco primeiro).
os queijos frescos, pobres coitados, recomeçam de imediato a busca, agora um pouco mais debilitados, mas não tarda juntam-se à corrida as conservas, igualmente abatidas. é… o falso amor atenua a procura.
entre um e outro falso alarme, vão-se descobrindo novas formas de desamor. umas vezes chegamos quase a crer que o amor é aquilo, outras nem tanto. 
pois é, não querendo generalizar, mas generalizando, chega sempre uma altura da vida em que, mesmo quando se sabe perfeitamente que aquilo que temos com um ou outro queijo fresco (ou até mesmo com a sardinha em lata), não é o amor sem reticências, fingimos que sim, por comodismo. o que é compreensível, pois passar uma vida a correr, 365 dias por ano, todos os anos da nossa vida, é difícil… não há quem aguente. 
por tudo isso e muito mais, meus amigos, não se esqueçam de mudar as sinopses, os prefácios e os títulos. ficaremos todos imensamente agradecidos e com menos expectativas em relação a esse extravagante, caprichoso e hesitante amor.


28 de março de 2013

então e tu samuel, o que é que fazes?


eu despeço-me o maior número de vezes possível. vejo as despedidas como recomeços.vejo-as  também como um curativo temporário (numa ferida permanente!). não espero um melhor ou um pior recomeço. só procuro um novo ponto de partida (o máximo de vezes possível!). agora que já te esclareci, é hora de dizer adeus.

27 de fevereiro de 2013

grande.


'Lembras-te quando eu queria uma bola de basquet e tu as barbies e purpurinas? Lembras-te quando partiste a porta enquanto discutíamos? Lembras-te de chorarmos juntas? E de chorarmos por culpa uma da outra,lembras? Eu lembro! Lembras-te quando a mesa de vidro, no centro da nossa sala, se partiu em pedaços e eu estava entre os cacos? Lembras-te de reza querermos prolongar as férias? e da aquela fatalidade no dia seguinte? Lembras-te de partires a perna? Lembras-te de te chamar à razão e me ignorares? Lembras-te das fases críticas da nossa adolescência? Lembras-te de eu te assaltar o guarda-roupa? Lembras-te de não gostar dos teus namorados? Lembras-te das nossas diferenças? E das parecenças? 
Lembras-te que eu gosto de ti? 
Acho que não te podia gostar de maneira melhor, gosto de ti exactamente como és, e tudo aquilo que me dás tem sabor especial à parte do que navega dentro de ti. Se te lembras, nunca te esqueças!'
parabéns,mana! 


13 de fevereiro de 2013

guerra dos sentidos


- o jantar está na mesa. - grita uma voz ao fundo do corredor.
o ouvido é o impulsionador da corrida até à cozinha onde a meio do percurso, se junta o olfato, que deu sinal de alerta pelo aroma pouco usual que pairava no ar. a fome continuou a falar mais alto e o passo acelerou.
o meu lugar de sempre e um prato novo. um prato que fez com que o meu olhar instantaneamente se desviasse - arroz de cabidela. a galinha que vi ser morta à tarde pela minha avó foi aproveitada minuciosamente. arroz envolto num molho escuro, o sangue da galinha que agora ali está desfeita em mil pedaços e com o seu sangue, que em tempos lhe deu vida, a regar cada pedaço seu.
um prato sem vida, sem côr, um prato que retrata o expoente máximo de insensibilidade humana. merda! viraram o bicho do avesso, transformaram-no… desfiguraram-no… estriparam-no. como esperam que queira comer isto? como ousam sequer comer isto?
o garfo e a faca parecem pesar dez vezes mais do que o habitual… a esforço levanto-os da mesa. o garfo que vai ao prato, o garfo que vai à boca. as papilas gustativas que tentam, de imediato, expulsar o pedaço de comida (comida?) que lá entrou. não distingo o sabor do arroz, muito menos os pedaços da galinha. isto sim, tem um gosto estranho! não o posso colocar em nenhuma das minhas gavetas gastronómicas: nem doce, nem salgado, nem amargo, nem azedo. mas…já sei ao que sabe! sabe a sangue (se bem que tem um travo de vinagre). sangue? quem teve a imbecil ideia de sugerir o sangue como um sabor a provar? um canibal?! engulo a esforço, resistindo a custo ao vómito e procuro a água. o copo está vazio, procuro a garrafa. nem tempo tive para encher o copo. bebo tanto quanto posso.
parvoíce a minha em ter experimentado tamanha imundice, quando todos os meus sentidos me indicavam o contrário: cheiro, o aspeto, a textura, o som da morte da galinha. porque quis eu provar? já devia saber que a maioria ganha sempre, o paladar devida ter prescindido a prova. maldita curiosidade.
a garrafa de água termina. como uma fatia de pão, e o prato permanece intocado. deviam ter feito o mesmo com a galinha.

o peso do passado.



as luzes apagaram. é mais um dia que chega ao fim, envolto num abraço.
- boa noite, amanhã um novo dia chega.
- mas, se o dia chegou ao fim, porque é que o peso dos dias passados me incomoda? se chegou ao fim não deveria voltar à corrida e, se decide voltar, é porque a teimosia lhe assiste… ou se calhar volta porque não conseguiu atingir o pódio e o protagonismo desejado e aí sim, para além da teimosia, também lhe gabo a persistência. enfim…é um jogo desequilibrado.

- desequilibrada pareces tu quando dizes esses disparates. são memórias que vêm de mão dadas com o peso de tudo aquilo que te define hoje. e, se o dia de hoje te pesar demasiado amanhã, culpa tua! porque ao que parece só te sentes pesada quando a memória de mãos dadas apenas com coisas que te desagradam. caso não assim fosse, amanhã ao acordares eu passaria a ser um perfeito desconhecido para ti.

- não posso contestar o que dizes. eu e esta estúpida tendência a pôr tudo no mesmo saco, achando que descomplica. na verdade o que sinto é só excesso de peso. o peso dos dias, o peso das horas, o peso de todas as pessoas de todos dias.mas sabes que mais!? amanhã começo a dieta.
um beijo e o abraço surgem em demonstração de concordância. as luzes permanecem apagadas e os olhos juntam-se agora a elas. 


11 de fevereiro de 2013

se não arriscares nada, estás a arriscar muito mais



pensemos na vida como uma melodia. o homem não pode ter uma melodia exata mas quem o queira e tente, rapidamente se aperceberá da monotonia de tamanha exatidão e do vasto mundo que está a perder. o homem é feito de canções, de mudanças bruscas de grupo musical ou, para os mais conformados, de uma grande panóplia de possibilidades dentro de um mesmo estilo.
sou uma jukebox. em dias de sol o jazz e as vozes femininas movem-me, já nos dias de chuva rendo-me ao indie. em dias de festa sou música popular e até mesmo um pouco de pop. agora, se me pedissem para me render a uma única e repetida melodia, o pedido seria negado. fechar horizontes equivale a uma cegueira consciente e voluntária. fechar horizontes indica a perda de tudo o que nos negamos a ver, ser, ouvir e sentir. fechar horizontes traz perdas incontornáveis aleadas à ignorância.
voltando à música, aliás, voltando ao homem, vão sempre existir músicas que, por muita persistência que tenhamos, não entrarão no ouvido, muito menos serão do nosso agrado, mas só o saberemos se conhecermos, se estivermos dispostos a conhecer e a educar o nosso ouvido. a isso chama-se arriscar, percorrer caminhos novos, sejam eles de terra batida ou de calçada portuguesa. sejam eles estradas longas e retas ou uma subida íngreme, seguida de curvas e contracurvas. para a frente é o caminho, a estagnação traz inércia, e a inércia traz o risco de nos perdermos de nós mesmos.
o homem que arrisca segue instintos, intuições, muda a cor do cabelo e sabe remediar. o homem que arrisca é a música que improvisa no contratempo. o homem que não arrisca é o conformado, que perde o que se nega a conhecer, que vive no seu mundo aleando-se dos outros e afastando-se dos demais. o homem que não arrisca é a música não curiosa com um simples ritmo que não passa de um compasso de quatro tempos.
é uma balança claramente descompensada a da música ditada pelo risco. 
sejam bravos e dancem!