22 de julho de 2012

economizador de impulsos

é muito mesquinho.
gosta dos livros no sítio certo, do chão sem migalhas, da roupa lavada e dos sítios do costume. não gosta de atrasos e não perdoa facilmente. se não gosta ou, se alguma coisa lhe faz comichão, não se cala. não tem um saco que possa encher, nem o copo que possa transbordar com aquela última gota de água. é um ser sem depósito de opiniões. um profeta dos seus pontos de vista.
não tenho papas-na-língua, não fazendo isso de mim má pessoa. não contesto quando não tenho razão. tudo bem que a minha razão só a mim me pertence mas, torna-se mais minha razão quando a faço ser a razão ou não-razão dos outros. não vou guardar para mim uma coisa que me pode pesar as costas, gosto de andar de mãos a abanar e de cabeça erguida. não quero com isto, passar o peso para os outros. mas, na real verdade, nunca fui bom economizador de impulsos. 

19 de julho de 2012

rés-do-chão a meia luz

lá na rua onde mora, a noite traz aventuras estranhas. da sua janela do rés-do-chão entreaberta, com a luz do candeeiro acesa, la está ele, todos os dias e à mesma hora a assistir a autênticos filmes de acção, comédias românticas e dramas. são os carros que passam, os carros que chegam mas não passam e param, os carros que se enchem de pessoas, os carros com os vidros abertos e os outros que nada deixam ver. para além dos carros, e das pessoas que os carros levam, estão outros cujo seu transporte nada mais é do que os próprios pés mas,de quando em quando, trazem um cão como bengala. às vezes vêm aos pares, outras não. às vezes falam quando estão sozinhos e mantêm o silêncio quando têm companhia.  
(e o que fará ele com a janela entreaberta?) ele observa, resolve o que para ele são enigmas e especula, especula muito.  é como uma pastilha elástica para o cérebro, mantém-no entretido. depois da recolha da informação,senta-se no seu sofá e, mantendo a meia luz, transforma as suas fantasias em letras, escritas uma a uma, descrevendo detalhadamente tudo o que a noite no rés-do-chão, de janela entreaberta e sala a meia luz, o permitiu ver. no final bebe um copo com leite,escova os dentes e vai dormir. na verdade, é um rés-do-chão como qualquer outro, mas há dias em que a imaginação precisa do estímulo certo. o dele é a noite e o movimento da sua rua. já o da vizinha do lado, é ver a telenovela. e o do 4º andar, ó (!), o do 4º andar é  louco, diz o homem do copo de leite. nem bom dia, nem boa tarde, nem boa noite e a janela para este lado da rua?! nem sabes.. está sempre fechada. 

13 de julho de 2012

ironia.


 a vida é irónica,não a consigo ver de outra forma. já não se trocam apenas as roupas, nem os lençóis de cama,agora invertem-se papéis com tanta ou mais frequência do que a própria troca de roupa. num instante remoto somos papel principal passando, quase que em simultâneo, para figurante de cena. somos ‘o todo, num instante’, efémero. deambulamos de um lado para o outro, com rumo incerto mas, ainda assim, convencidos de que aquele é o caminho que queremos cruzar. somos camaleões sorrateiros, por vezes destemidos, quando nos tentamos camuflar no absurdo, cativados pela curiosidade alheia, pelo risco,pela troca de papéis. 
na verdade, cada um de nós descreve o seu filme enquanto personagem principal, o problema, ou a agradável surpresa, é quando assumimos presença no filme de outros. são muitos caminhos que se cruzam e ainda mais aqueles cujo caminho se deveria conjugar de outra forma. são caminhos que seguem juntos para sempre e outros que seguem rumos diferentes. são caminhos intermitentes. são caminhos de terra, caminhos com calçada portuguesa, são caminhos que se cruzam em dias de chuva e de sol. são atalhos. caminhos, todos eles responsáveis pelo filme de cada um de nós.
 o meu filme é diferente, sinto-me a narradora de todos os caminhos que comigo se cruzam, tendo a particularidade de ter uma visão global, tornando cada um dos meus passos muito mais meticulosos. 
às vezes gosto do meu filme, noutras vezes tenho vontade de mudar o guião.

9 de julho de 2012

mas o que ele queria mesmo

era já noite cerrada e o sono tardava em chegar. a cama, há muito desfeita pela tamanha agitação, parece tudo menos um sítio tranquilo para dormir. fechou os olhos mais uma vez, esperançoso de que seria desta que o sono o apaziguaria. contou de 0 a 100 e de 100 a 0 - efeito nulo. voltou a ver as horas, mais vinte minutos se tinham passado, já estava mais perto o dia do que a noite.
- não quero pensar em nada (pensou ele). ora bolas, ao pensar que não quero pensar em nada, estou a pensar.
mas o que ele queria mesmo era atingir o vazio completo da mente, distorcer tudo quanto sabe, sente, quer e pensa. tornar tudo isso numa névoa tão intensa que a própria curiosidade se intimidaria. mas o que ele queria mesmo era um blackout momentâneo, que o cérebro ficasse em transe temporário, onde nada estava permitido a entrar e nada haveria a sair. mas o que ele queria mesmo era fechar os olhos e não ver nada mais do que nada. já que meio mundo se farta de usar essa palavra em vão e, na mais pura das verdades, nunca fizeram verdadeiramente nada. mesmo quando da morte se trata, acreditam e defendem vivamente que o ciclo está longe de acabar ali. 
- o ser humano é mesmo melindroso. até para a simples ideia do fim da vida arranjam fugas alternativas.
 mas o que ele realmente queria era não fazer nada e só depois, de cabeça vazia, adormecer. nada disso aconteceu, muito pelo contrário, de tanto esgotar possibilidades e engendrar planos para que nada lhe passasse pela cabeça, o cansaço acabou por chegar. finalmente adormeceu mas, simultaneamente, o sonho chegou. não foi hoje que o vazio o alcançou.